Aguardente expresso

Durante as missões da ONU acontecem inúmeras situações anedóticas dignas de registo.

Recordo uma certa manhã, na missão da ONU em Angola (1992) para apoiar com meios aéreos as Primeiras Eleições Livres, após as aeronaves terem partido como um bando de pássaros do aeródromo de Luena, ter-me sentado para descansar e ligar o leitor de cassetes para ouvir uma música suave. Nessa altura verifiquei que as pilhas estavam gastas. Abri o aparelho e iniciei o procedimento de troca das pilhas. Um miúdo que andava por ali na placa, a tentar catar os desperdícios de combustível de avião Jet A-1, aproximou-se e observou cuidadosamente todos os meus movimentos. Quando eu me preparava para guardar as pilhas velhas, a criança dirigiu-me a palavra:

“Sôr, dá-me essas pilhas.” – Pediu ele.

– “Companheiro, estas pilhas estão gastas, já não funcionam, perderam a electricidade; entendes?” – Respondi-lhe.

“Não faz mal, Sôr. Dá-me as pilhas, por favor”. – Insistiu o miúdo.

“Ho rapaz, eu dou-te as pilhas mas elas não te vão servir de nada. Não consegues tirar nada daí de dentro” – retorqui enquanto lhe dava as três pilhas AA do leitor de cassetes..

“Consigo, consigo“ – disse ele – abro-as com uma catana e meto-as dentro de um panelo com fruta e farelo de milho a fermentar, para fazer a Caxipembe [aguardente de milho]. O ácido das pilhas apressa as coisas e amanhã o Caxipembe já está pronto para eu vender no bazar!”

“Ora toma!” – Pensei eu em voz alta – “Acabaste de receber uma aula de química aplicada, de um puto com 12 anos! Então é assim que vocês fazem Caxipembe Expresso?”

Mas a criança já tinha descolado em direção aos portões do aeródromo, com as três pilhas na mão direita e uma lata com Jet A-1 na outra. Fiquei apreensivo com a qualidade da poderosa aguardente que tinha estado a beber, com os meus amigos Russos, numa das serenatas dessa semana.

Publicado por Paulo Gonçalves

Retired Colonel from the Portuguese Air Force

Um comentário em “Aguardente expresso

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