Num dos dias da Força Aérea, onde se fez uma exposição de aeronaves no Centro Comercial de Cascais, ocorreu um episódio que marcou quem estava presente no local. Entrou no Centro um casal sénior acompanhado por seus filhos adultos, e passearam-se distraidamente pelas peças exibidas no recinto. De repente, ao passar em frente a uma das aeronaves expostas, o homem com aspecto mais maduro estancou, caiu de joelhos no chão e chamou a família. Estava em frente de um Alouette III exactamente igual àquele que o tinha salvo na Guerra do Ultramar, quando jazia ferido no meio do capim durante uma emboscada. A admiração daquele homem por aquela máquina era tanta, que não conseguiu conter a emoção e começou a chorar… ali … no meio do Centro Comercial, em frente ao “seu” AL III.
Na colmeias dos Zangões (BA11 – Beja)
Este é o “fado” do helicóptero mais famoso da Força Aérea Portuguesa; vir a ser recordado com amor por muitos por ter salvo vidas, odiado por outros por as ter ceifado na sua versão “Heli-canhão”, admirado por milhares nas acrobacias dos Rotores de Portugal e respeitado por todos os pilotos militares, que aprenderam a arte de voar em asa rotativa nos últimos 57 anos.
O Sudaviation – SE 3160 Alouette III entrou ao serviço da Força Aérea Portuguesa em 1963, a fim de complementar e incrementar o sucesso que o seu congénere mais fraco – o Alouette II – estava a ter nos teatros de operações ultramarinos. A FAP operou 142 AL III no Ultramar, sendo estes caracterizados por serem aeronaves muito manobráveis e versáteis que desempenhavam cabalmente as missões de heli assalto, salvamento, evacuação sanitária, resgate em ambiente naval com guicho, patrulhamento, observação/comando e controlo aéreo, transporte tático e instrução de voo.
O AL III pode transportar 6 passageiros, ou 2 macas e 2 passageiros, ou 800 Kg de carga interna, ou ainda 750 Kg em carga suspensa. No que toca a armamento, pode ser equipado com um canhão lateral de 20 mm de calibre e um sistema de lança-foguetes com capacidade para 12 foguetes de 2,75″.
Heli ataque sobrevoando Almourol
Para além da Guerra do Ultramar, os Alouette III da Esquadra 552 (Zangões) foram das poucas aeronaves Portuguesas a manter um destacamento permanente numa missão de Manutenção de Paz das Nações Unidas, nomeadamente em Timor-Leste. Em 2019 a FAP adquiriu o novo helicóptero Koala, o qual virá substituir os Alouette III, entrando estes últimos em “phase out” gradual, até à sua completa extinção.
Em 1992, após termos recebido, em Luanda, as instruções sobre a missão que era atribuída aos 10 oficiais da FAP que partiram para Angola em apoio às Nações Unidas, distribuíram-nos por 10 aeródromos provinciais no extenso território Angolano. Calhou-me a Província do Moxico com aeródromo em Luena (antigo Luso). No dia seguinte, um avião da ONU fez um longo voo com diferentes destinos, para largar os novos “Oficiais de ligação aérea”.
Quando aterrámos em Luena, e depois de estacionarmos na placa, o piloto cortou os motores e saiu do cockpit, informando-nos que a aeronave iria ser reabastecida. Saí do avião e recolhia a minha bagagem porque era o meu destino. Um carro de reabastecimento aproximou-se a aeronave foi rapidamente reabastecida. Após assinar uns quantos papéis o piloto dirigiu-me a palavra dizendo o que já havia dito aos outros que tinham sido “largados” anteriormente:
– “Aguarde aqui tranquilo que já o virão recolher.”
Ato contínuo fechou a porta do King Air, pôs os motores em marcha, rolou para a pista e descolou. O próximo Capitão da FAP sairia em Saurimo e o último no Cafunfo.
Enquanto esperava na placa por alguém da ONU para me recolher, foram aparecendo algumas crianças que deambulavam por ali. Entretanto, resolvi aliviar a pressão na bexiga e, cumprindo o procedimento aeronáutico mundialmente conhecido para aviadores masculinos, voltei as costas aos hangares; afastei-me das crianças e da área pavimentada da placa; entrei nas bermas, bem para dentro da zona de terra; abri o fecho inferior do fato de voo e urinei. Foi nessa altura que tive a minha primeira experiência de zona de guerra: – Um dos miúdos veio até à berma da zona pavimentada e gritou, gesticulando muito aflito:
– “Sôr, sôr sai daí, mas vem pelo mesmo caminho e sempre em cima das ervas”.
Eu estaria a pouco menos de 20 metros da criança. Compus-me, voltei-me e, sorrindo, perguntei-lhe:
– “Então porquê é que eu tenho de ir sempre por cima das ervas?”
– “Tché?! Porque essas ervas não crescem em cima das minas!” – Respondeu o garoto, estupefacto com a minha ignorância.
Nessa altura o meu sorriso idiota caiu ao chão, e tive outra vez muita vontade de urinar. Eu estava na zona minada de proteção ao aeródromo, a 20 metros da zona pavimentada. De repente, aqueles 20 metros tinham ficado mais distantes do que à vinda. Parecia que os tufos de ervas se tinham afastado entre si no meio da terra avermelhada. Senti um suor frio escorrer pela coluna vertebral e um nó na boca do estomago. Respirei fundo, observei o chão em redor e reconheci as minhas pegadas. Nem toda a gente calcava botas de voo naquele local. Regressei à placa, saltando entre tufos e pegadas, com o corpo encolhido, os dentes cerrados e os olhos meio fechados … supondo que iria doer menos assim, caso pisasse uma mina!?!
Quando, finalmente, pulei para cima do asfalto, ganhei nova vida. O coração batia descompassadamente e tinha a respiração muito acelerada. Assim que tive a oportunidade, andei a colocar sinais no local, onde escrevi à mão: – “Danger Mines” (Perigo minas).
It is common knowledge that UN missions are full of funny stories, and weird episodes, which are worth remembering later. Here’s one from UNDP mission in Luena – Angola – back in 1992.
A certain morning, after all the UN aircraft had took-off from Luena’s airfield to support Angola’s first free elections; I realized I finally had a moment to rest. Seating on an empty Jet A1 fuel drum, I took my portable cassette player (Walkman) to listen a peaceful music. That was when I noticed the Walkman’s batteries were flat, and needed to be changed. I knew I had a spare pair of batteries, somewhere in one of the (too) many pockets of my flight suit. While I was struggling with all those pockets, a local child cautiously approached me, observing every movement I was doing. It was normal to see local kids hanging around in the aircraft ramp, with a can on their hands, trying to collect wasted fuel dropping from the poorly sealed fuel tanks; therefore, I didn’t pay much attention to the kid.
– “Mister … please give me the old batteries.” – He asked.
– “These batteries are old, they’re flat, there’s no power on them; do you understand?” – I replied.
– “It doesn’t matter mister, please give me the batteries.” – He insisted.
– “Listen kid” – I replied – “I’ll give you the batteries, but they are not good; you won’t be able to take anything out of it!” – I said, while handing the old batteries to the child.
–“Yes I will” – He answered with a wide smile on his face – “I’ll cut it in half with a machete and put them inside a pot full with old fruit and fermenting corn bran; tomorrow I will have Caxipembe [a strong brandy made of corn … allegedly!], to sell at the open market.”
African moonshine – Caximpebe “Expresso”
– “There you go! … I’ve just received a one-on-one chemistry lesson from a 12 year old kid! … So that’s the way you make the brandy we’re buying in the marked?
But the child had already run away towards the exit of the airfield, carrying the fuel can in one hand and my flat batteries on the other. That day on, I was concerned with the health of my Russian crews, which used to sing serenades at night, under our the colonial porch, heavily sprinkle with several bottles of Caxipembe “Expresso”.
Em Sarajevo (1995), havia estórias de guerra que eram autênticas anedotas, difíceis de acreditar. Contudo, os entendidos juravam a pés juntos que eram absolutamente verdadeiras. Uma dessas estórias contava que, no início das confrontações, os Muçulmanos estavam praticamente desarmados, e sem pessoal qualificado no que quer que fosse. Em oposição, os Sérvios tinham todo o apoio do Exército Federal Jugoslavo, não só em armamento, como em pessoal experiente. A solução encontrada pelos Muçulmanos foi recolher a todo o tipo de arranjos menos claros, para tentar equilibrar a sua desvantagem. Consta que quando os Sérvios chegaram o cerco a Sarajevo, uns mafiosos tinham conseguido contrabandear para o lado dos Muçulmanos dois morteiros de 82 mm, com algumas caixas de granadas para os municiar. Deliciados pelo facto de “já terem artilharia”, foi imediatamente selecionado um pequeno grupo de combatentes para operarem aquelas novas armas. Foi-lhes explicada a forma de funcionar dos morteiros, recorrendo a papel e lápis e simulação gestual. Não havia possibilidade de treinarem nem de verem qualquer demonstração prática, porque não havia munições em quantidade suficiente para o efeito.
No dia seguinte à sessão de instrução, um dos militares foi dotado de um par de binóculos e um rádio transmissor portátil e subiu a um local com visibilidade sobre as linhas sérvias. A sua missão era de guiar os disparos que os seus camaradas iriam fazer com um dos morteiros. Deu-se o primeiro disparo e a granada caiu ao lado do alvo. A distância do disparo estava correta, mas a direção estava errada e deveria ser corrigida para a direita. Utilizando o rádio que lhe tinha sido distribuído, o observador informou os artilheiros que o alvo estava 100 metros para a direita daquele disparo inicial; e aguardou por um novo disparo para dar mais correções. Contudo, o segundo disparo demorava bastante a ocorrer. Intrigado com a demora exagerada, o observador decidiu questionar via rádio o que é que se passava.
– “Porque é que não disparam outra vez?”
E recebeu a seguinte resposta:
–“Espera! Já levámos o morteiro 100 metros para a direita, agora estamos a levar as granadas. Estas coisas são pesadas … tens de aguardar!”
Os jovens combatentes muçulmanos eram tão inexperientes, que nem sequer se aperceberam que bastava rodar o cano do morteiro um determinado número de graus para a direita para obter o resultado pretendido.
Se atendermos a que no lado sérvio estavam militares de carreira, reservistas treinados e equipamento do Exército Nacional Jugoslavo, este hilariante episódio é demonstrativo da discrepância que existia. Mas os muçulmanos aprenderam rapidamente a arte da guerra e começaram a ter capacidade de resposta.
O Avro 504 deve de ter sido o avião da Primeira Grande Guerra que mais se produziu e que mais tempo sobreviveu ao evento que lhe deu origem. Efectivamente, consta que foram produzidos 8.970 aviões Avro 504 (de vários modelos diferentes e em fábricas distintas) tendo esta aeronave permanecido a voar por cerca de 20 anos.
Em Portugal, o Avro 504 foi introduzido no Exército em 1924, tendo sido adquiridas 30 aeronaves. Como tinha uma variante armada (podi a levar uma metralhadora do extradorso da asa superior e 4 bombas) equipou esquadrilhas de caça; contudo, foi essencialmente na instrução de pilotagem (da Aviação Militar e da Marinha) que esta aeronave se notabilizou. Foi também um Avro 504 que em Outubro de 1930, fez um voo demonstrativo nos Açores – Ilha Terceira – inaugurando desta forma o aeródromo da Achada.
A esquadrilha de Avro 504 de Sintra, estava dedicada à instrução de pilotagem, e identificava as suas aeronaves através de uma tarja diagonal na fuselagem, pintada de cor azul claro. No centro havia um círculo branco onde era inscrito o número da aeronave. O avião número 6 estava dedicado ao Comandante de Esquadrilha e, para o efeito, tinha uma apresentação visual um pouco distinta: – A faixa azul era em xadrez branco e azul claro. Consta que Humberto Delgado – o (futuro) “General Sem Medo” – foi comandante de esquadrilha naquela Unidade e voava essa mesma aeronave (“O axadrezado”).
Humberto Delgado voando “o seu” Avro 504, em Sintra, como comandante de esquadrilha de instrução de voo.
Os Avro 504 estiveram ao serviço de Portugal desde 1924 até 1937.
In 1992, when the UN helped Angola in organizing its first free elections, UNAVEM (the UN mission in country) tasked UNDP (UN Development Program) to deal with the technicalities of the process. After a short assessment, it was verified that the Country was so heavily mined that it wouldn’t be realistic to image land transportation of all the staff and material for the electoral venue. It had to be done by air! Therefore, upon request from UDDP, ten Portuguese Air Force air traffic managers deployed to Angola and were distributed throughout the Country, to support this ambitious operation (the biggest air campaign organized by UN to that moment).
I was assigned the UN air fleet at Luena –Capital of the Moxico Province (the largest Angolan Province in the far East of the Country). The civil war had damage severely the entire region, both in the human and material aspects. Arriving to Luena and touring the City’s streets was a chocking experience. All the buildings with an institutional semblance had been completely sprayed with machine-gun fire. There was no space greater than 50 centimeters without a bullet impact. It looked like a horrible degenerative disease, which affected the building materials; something like …“brick measles”. The roof tiles were broken and largely missing, and it appeared the building edges had been nibbled, bitten and gnawed. The air still had the odor of burned material. That was destruction just for the fun of it! There was no tactical advantage for that level of “dwellingcide” (genocide of buildings).
Brick measles – Angola (1992)
I thought it was a unique situation, the result of a local unsolved issue … but it wasn’t, it was all over the interior of the Country. It was no even an Angolan problem; it was a human disorder, because, three years later I found “brick measles” again, in Europe – Bosnia Herzegovina; Mostar streets were a perfect example of it.
Durante o cerco a Sarajevo (1992/95), para além das baixas causadas pelos combates entre as forças opositoras, havia também os chamados “alvos televisivos”, que funcionavam como amplificadores do cenário de guerra.
Os bósnios muçulmanos perdiam quase todas as batalhas mas estavam a levar a melhor, em termos da Grande Estratégia, porque olhavam para além do que ocorria no terreno. Tinham uma visão prospetiva, mantendo-se concentrados nos seus objetivos finais e não nos resultados de curto prazo. Tinham descoberto o Centro de Gravidade da decisão internacional: – as salas-de-estar dos lares na Europa e nos Estados Unidos da América, durante o horário nobre dos telejornais. Sabiam também que o ano de 1995 era particularmente importante, porque os Estados Unidos iriam ter eleições presidenciais no ano seguinte e Bill Clinton necessitava de apresentar um grande feito político na sua ação internacional. O fim das hostilidades na Bósnia, sob um acordo promovido pelos Estados Unidos, era uma belíssima arma para ser usada durante a campanha eleitoral.
Os bósnios necessitavam de imagens fortes, que indignassem telespectadores ocidentais, para que estes exigissem aos seus políticos o fim das hostilidades.
Entre os Capacetes Azuis de Sarajevo, havia mesmo uma regra não escrita que dizia:
–“Mantém-te longe dos cameramen, se não quiseres ser abatido ao vivo.”
Os Franceses que o digam … perderam vários soldados dessa forma. Não se passava nada até aparecerem os jornalistas e, após estes colocarem as suas câmaras a filmar, os snipers entravam em ação.
No auge da Guerra Fria (anos 50) os Países Aliados (NATO) temiam uma invasão terrestre do Pacto de Varsóvia apoiado no tremendo número de carros de combate que os Soviéticos tinham. Para travar essa invasão teria de haver (especialmente na Alemanha e Itália) uma frota de aviões de combate dedicados a destruir carros de combate e respectivos apoios logísticos na linha da frente Alemã/Italiana. As distâncias a percorrer não eram grandes mas a frequência dos voos deveria ser elevada, com largada de armas rápidas na zona de combate. Desta forma, a nova aeronave embora subsónica deveria de ser rápida (mach 0.95), de baixa manutenção, muito manobrável a baixa altitude, que pudesse operar a partir de pistas curtas improvisadas (auto-estradas), com quatro metralhadoras 12.7 mm ou dois canhões de 30 mm e bombas/rockets, com uma autonomia de 280 Km e 10 min. sobre o alvo. A FIAT (Fabbrica Italiana Automobili Torino) respondeu ao desafio com o FIAT G-91. A República Federal da Alemanha operou 460 G-91 e a Itália 229, nas várias configurações que a aeronave teve.
Portugal comprou os seus primeiros (40) FIAT G-91 à Alemanha, para operar nos teatros de operações do Ultramar. A exemplo do que acontecia com as contrapartidas americanas pela utilização da Base das Lajes, também o negócio com os alemães teve nuances de contrapartidas pela utilização germânica da Base de Beja. Entre 1976 e 1982 Portugal recebeu mais FIAT G-91 da Alemanha, tendo a FAP operado perto de uma centena de aparelhos.
O FIAT também foi usado em Monte Real(Falcões) treinando pilotos para a guerra do Ultramar
Durante a Guerra do Ultramar os FIAT operaram em Moçambique (onde, entre outras, surgiu a Esquadra dos Jaguares), em Angola e na Guiné.
Após o conflito ultramarino a FAP organizou duas esquadras equipadas com G-91, a Esq. 301 Jaguares na BA-6 (Montijo) e a Esq. 303 Tigres na BA-4 (Lajes – Açores).
Alcunhado carinhosamente de “porquinho” (porque comia todo o tipo de combustível que lhe dessem, ou qualquer coisa que se lhe atravessasse à frente da entrada de ar da turbina) ou de Gina (G NInety one), os FIAT foram abatidos ao efetivo da FAP em 1993 (quando já só existia a Esq. Jaguares), tendo voado com a Cruz de Cristo nas asas durante 27 anos, onde efectuaram 75.000 horas de voo e ganharam, por duas vezes, o prémio “Tigre de Prata” nos “NATO Tiger Meetings” (top guns) da Aliança.
Legenda (este desenho não está, obviamente,à escala) – 1 Hotel de jornalistas “Holiday Inn”; 2 – Edifício do PTT e Quartel-General da ONU para o Setor Sarajevo; 3 Monte Igman; 4 – Zona Sérvia de Dobrinja; 5 – Avenida dos Snipers; 6 – Quartel-General da ONU para a Bósnia-Herzegovina; 7 – Aquartelamento ONU de Zetra; 8 – Zona Sérvia de Lukavica e Grbavica; 9 – Moradia da equipa de UNMO; 10 Monte “Spiky Rock”; 11 – Monte Trebevic.
No início de Agosto de 1995, entrámos em Sarajevo via Monte Igman, porque o Aeroporto estava fechado ao tráfego aéreo. Por todo o lado havia muito lixo, pedaços de prédios e restos de viaturas automóveis. Só o vento, ou a deslocação de ar provocada por um eventual carro da ONU que passasse, fazia com que os papéis abandonados no pavimento se movessem de um sítio para outro. Onde o lixo se concentrava um pouco mais, subia uma coluna de fumo por alguém lhe ter colocado fogo. Era a única forma de evitar pestes de animais que provocavam doenças na população da Cidade. Também havia, obviamente, corvos e gralhas a ajudar na limpeza das lixeiras.
Nas janelas e varandas, que não estavam voltadas para o lado sérvio (portanto protegidas do fogo dos snipers), havia vasos e floreiras onde, em vez de plantas de jardim, cresciam vegetais comestíveis. Cenas desesperadas de sobrevivência de uma população sitiada. Ouviam-se com regularidade disparos de armas automáticas ligeiras, intervalados por armas pesadas. Ocasionalmente ocorria uma explosão à distância. Entre os altos edifícios de apartamentos havia áreas de vivendas familiares, que quebravam a obstrução aos raios solares deixando a luz entrar nas ruas imundas de lixo. Todos os objetos em madeira, sendo mobiliário público ou privado, que não fossem absolutamente necessários, tinham sido há muito tempo transformados em lenha para aquecer o inverno ou cozinhar a parca comida que aparecia na Cidade. Os antigos canteiros municipais, que anteriormente embelezavam as ruas com plantas e zonas verdes, estavam votados ao abandono e transformaram-se em pequenas selvas com grandes arbustos. Nas ruas pouco frequentadas, cresciam ervas altas nas uniões do pavimento. Um cenário de deserção urbana pós-apocalíptico.
Conforme se ia penetrando na zona central da Cidade, começavam a ver-se mais pessoas nas ruas, tentando levar uma vida adaptada àquele situação. Em certas ruas apontadas às colinas circundantes, havia contentores marítimos, carros ligeiros e autocarros estropiados, empilhados uns em cima dos outros, procurando fazer um muro à visibilidade dos atiradores furtivos. Onde não havia espaço para colocar os veículos, era usada a alternativa de, a partir dos pisos superiores dos edifícios de ambos os lados da rua, atravessar uma sequência de cordas com todo o tipo de longos panos, cortinas, oleados e alcatifas penduradas, para obstruir a visibilidade dos snipers. Era na sombra desses obstáculos visuais que os peões transitavam, como um carreiro de formigas que não se desvia do trajeto.
Em algumas pontes, jardins públicos e esquinas de ruas, havia um sinal de trânsito que eu nunca tinha visto – “Pazi Snajper” [cuidado sniper]. Significava que, após aquela esquina, a próxima rua era considerada uma zona de morte, que estava na mira telescopia de uma espingarda de precisão a longa distância, de um sniper sérvio.
Em certos locais, como por exemplo junto ao hotel Holiday Inn, onde residiam quase todos os jornalistas, havia uma outra versão cuja tradução dizia:
– “Opasna zona , RUN or RIP” (Zona Perigosa – Corre ou Descansa Em Paz).
Era um aviso com um toque de humor negro, misturando a língua servo-croata – Opasna zona [Zona perigosa] com o Inglês – RUN [corre] or [ou] R.I.P. – o acrónimo fúnebre para Rest In Peace [Descansa em Paz].
Viam-se também muitos sacos de areia empilhados em trincheiras elevadas, para proteção das entradas dos edifícios. As grandes vitrinas das montras comerciais estavam tapadas por placas retangulares, em betão armado pré-fabricado, colocadas com a base menor no chão e inclinadas sobre o prédio que procuravam proteger. Nos edifícios altos, os pisos superiores estavam expostos ao fogo dos sérvios e exibiam a prova de uma guerra sem limites. Era como se alguém tivesse derramado um ácido poderosíssimo sobre os prédios, que os fosse desfazendo de alto abaixo. Quanto mais elevado era o andar, mais corroído estava. As paredes ostentavam as perfurações das balas e, em alguns sítios, ainda fumegantes, viam-se grandes buracos resultantes dos impactos diretos de projéteis de artilharia. Na generalidade, não havia vidros nas janelas e, em muitos casos, estava impresso a negro nas paredes exteriores o sinal de ter havia um fogo naqueles cómodos.
Onde parecia haver habitantes, os vidros eram substituídos por plásticos, com o símbolo da agência ONU para os refugiados – UNHCR – a qual oferecia rolos de plástico especificamente para esse efeito. Quanto mais exposta às colinas circundantes a casa estivesse, mais castigada pela guerra a sua estrutura estaria. Em Sarajevo, ter uma casa com uma linda vista para a montanha, era sinónimo de morte.
Sarajevo estava cercada por colinas e em quase todas elas havia tropa sérvia a bombardear a Cidade.
Legend (this drawling is, obviously, not to scale): 1 –Hotel Holiday Inn (international media HQ); 2 – PTT building and UNPROFOR HQ for Sector Sarajevo; 3 Mount Igman’s descent road; 4 – Serbian area of Dobrinja; 5 – Sniper Alley; 6 – UNPROFOR HQ for Bosnia-Herzegovina; 7 – UN Compound in Zetra; 8 – Serbian area of Lukavica and Grbavica; 9 – UNMO Team house; 10 – Mount “Spiky Rock”; 11 – Mount Trebevic.
This was the way I saw Sarajevo in August 1995, just before NATO’s airstrikes: There was domestic trash, parts of automobiles and smithereens of buildings everywhere. Due to the war, no one was collecting the trash. Crows and rats were proliferating among all that filthiness. The gardens and urban green spaces were abandoned and transformed into little jungles, with big bushes and all sort trash hanging from the dry vegetation, a perfect hideout for unpleasant animals. Only the wind would sweep the papers and rolls of dry vegetation away.
In certain areas, covered by a building from the snipers’ fire, small garbage piles had been set on fire by some courageous citizen. We could see the smoke coming out of the dark stack, together with the stinky smell. Burning the trash was the only way to avoid a plague.
On the buildings hidden from the Serbian outskirts, the verandas and the windows had flower vases but, instead of flowers, there were eatable vegetables.
All urban public furniture made of wood, such as garden benches, fences, lamp posts, etc., had been removed and used as firewood. Home furniture also had the same destiny; improvised fireplaces for cooking and home heat production. Only the essential woodcraft was kept away from the fireplace.
Those were desperate scenes of a population trying to survive a blockade, for more than three years. There was a constant background sound of automatic rifles bursts, the rhythmic fire of heavy guns and an occasional explosion.
Certain street corners and public spaces had a traffic sign Alex hadn’t seen before – “Pazi Snajper” – Caution snipers. That sign announced the “kill zone” of a sniper – a place where someone had been shot before.
Close to Hotel Holiday Inn, on Sniper Alley, there was another version of the sniper warning sign, with a touch of black humor: – Opasna Zona– RUNor R.I.P.– [Danger Area – Run or Rest In Peace(die)].