(um artigo publicado no Boletim nr. 83 da Associação da Força Aérea FEV.MAR.ABR 2023).
Há uns tempos, participei num ateliê de escrita e memória, organizado pela autarquia da área da minha residência. A dado passo, fui desafiado a escrever em escassos minutos uma curta história sob o tema “memória de uma gargalhada”. Confesso a surpresa no mote do desafio, mas lá consegui por o hipocampo a rebobinar rapidamente a memória de longo prazo, até regurgitar duas situações hilariantes de cariz aeronáutico. Recordo o sucesso das minhas “estórias”, quando tive de as partilhar com os restantes autores ao jeito de uma curta sessão de “stand-up comedy”.
Partilho em seguida essas duas “estórias”, as quais, por muito estranho que pareça, são absolutamente verdadeiras.
Estávamos no final dos anos 90, quando tive de me deslocar às instalações do Comando Supremo da NATO para o Atlântico – SACLANT – em Norfolk, nos Estados Unidos. A viagem previa um voo na TAP de Lisboa para Newark – New Jersey – seguido de um outro voo na Continental Airlines, de Newark para Norfolk – na Virgínia. Como é sabido, a maioria dos voos sobre o Atlântico fazem-se à noite dos Estados Unidos para a Europa, e durante a manhã da Europa para os Estados Unidos. Desta forma, ainda o sol não tinha nascido já havia uma fila considerável de passageiros a fazer o check-in no Aeroporto de Lisboa. Aguardámos pacientemente na porta de embarque, mas à hora estimada de partida o lugar onde o avião devia estar estacionado continuava vazio. Quando finalmente descolámos já estavam comprometidas várias ligações internas nos Estados Unidos, entre elas a minha. Irritado, relembrei a interpretação sarcástica do acrónimo TAP – Take Another Plane.
O piloto ainda tentou compensar o atraso, voando mais alto e mais rápido, mas sem grande sucesso. Ao chegarmos a Newark a meteorologia estava com “má cara” e o pessoal do cockpit deve de ter suado um bocadinho para de “por o estojo no chão”, tal eram os abanões que sentimos ao descer das alturas. Em termos práticos, confirmou-se o inevitável; o meu voo de ligação já tinha descolado há muito tempo. A moça que estava atrás do balcão da Continental procurou uma solução, e sugeriu-me um voo ao final da tarde. Porém, como eu tinha alguém à minha espera no aeroporto de Norfolk pressionei-a para uma solução mais célere. Ao verificar que me encontrava exasperado, e porque só tinha bagagem de mão para embarcar, a moça descobriu um outro voo que estava quase a partir, e atribuiu-me um lugar nesse avião. Corri para a porta de embarque enquanto ouvia no sistema de som a “última chamada” para aquele voo. Chegado à porta de embarque, fui encaminhado de imediato para um minibus que me aguardava com alguns passageiros lá dentro.
O veículo levou-nos apressadamente para uma zona do aeroporto onde havia uma extensa placa preenchida com várias filas paralelas de aviões de pequena e media dimensão, e depositou-nos à porta de um bimotor turbo-hélice com uma capacidade máxima de 19 passageiros.
Ao embarcar, reparei que o primeiro lugar do lado direito era ocupado por um cego, que se fazia acompanhar por um cão guia deitado a seus pés.
A única hospedeira de bordo acabou de ajustar um acrescento no cinto de segurança a uma senhora Afro-Americana, com uma volumetria XXXL, e fechou a porta do aparelho. Em seguida começou a fazer a demonstração dos procedimentos de segurança, quando foi interrompida pela voz do comandante de bordo:
– “Senhoras e senhores, lamento informar que esta aeronave foi abastecida para um voo mais longo e com menos carga, pelo que tem demasiado peso. Desta forma, para vossa própria segurança e bem-estar, convido-vos a regressarem ao terminal enquanto alijamos algum combustível. Sereis chamados em breve para embarcar de novo. Obrigado”.
O minibus voltou a aparecer, e regressámos todos ao terminal. Passado algum tempo, que não nos pareceu assim tão “breve”, lá fomos convidados a reembarcar no bimotor da Continental. Porém, após termos apertado os cintos, o piloto regressou ao sistema de som e informou os passageiros, que a demora tinha tido um impacto no planeamento do voo, e que agora havia uma linha de muita turbulência (cumulonimbus) no nosso trajeto para Norte, pelo que deveríamos aguardar no chão alguns minutos até a torre de controlo informar que a meteorologia tinha melhorado.
O piloto deixou os motores a turbinar a fim de responder de imediato a uma autorização da torre. Contudo, o tempo foi passando e não havia sinal de melhorias meteorológicas. O atraso em relação à pessoa que me aguardava no destino começou a ser tão grande que deixei de me preocupar, e comecei a rir-me de tudo o que se estava a passar em minha volta. À esquerda do meu lugar um jovem latino exaltava-se com grande sonoridade, protestando em inglês e praguejando em espanhol, porque iria perder uma entrevista de trabalho em Norfolk. Mais atrás, a senhora Afro-Americana também vociferava qualquer coisa que o meu nível de Inglês não conseguia entender. As horas iam passando e os protestos aumentaram porque os passageiros já estavam a ficar com fome, uma vez que ninguém tinha almoçado. A pobre hospedeira já não sabia o que fazer, e decidiu começar a oferecer pacotinhos de amendoins a toda a gente, pedindo desculpa por tudo aquilo. Os protestos eram tantos que já quase não se ouviam os motores do avião, e o ambiente dentro do pequeno Beechcraft começou a ficar causticamente divertido.
Como a aeronave era muito pequena, a tripulação do cockpit estava perfeitamente consciente daquilo que se passava uns escassos metros mais a trás. Foi nessa altura que o piloto comandante regressou ao sistema de som, com uma voz deveras comprometida, e disse:
– “Senhoras e senhores … parece que a meteorologia está a melhorar mais a Leste, e a torre sugeriu-nos um trajeto um pouco diferente. Porém, agora temos combustível a menos para esta nova rota, pelo que vamos ter de meter um pouco de carburante para estarmos seguros e dentro dos procedimentos. Solicito que aguardem dentro no autocarro que está a caminho do nosso local, para evitar o transtorno de uma viagem para o terminal. Prometo que seremos breves e partiremos logo de seguida.”
Já estávamos a levar a coisa na desportiva, e íamos rindo de tudo e de todos. Pelas minhas contas, por essa altura já estaríamos a aterrar em Norfolk e ainda estávamos na placa de Newark.

Quando tudo parecia pronto para seguirmos, ocorreu a parte mais hilariante: – o cão do cego começou a ganir. O dono chamou a hospedeira e disse-lhe que o animal tinha de sair para fazer “necessidades”. Imagine-se o que seria um cego a passear o seu cão, numa placa de aviação onde vários aviões tinham os motores a hélice a turbinar. Vai daí, o comandante de bordo deu instruções à relutante hospedeira para ir fazer um passeio com o animal, na parte de trás do Beechcraft. Ao chegar próximo da minha janela, o animal parou e agachou-se para defecar.
Nessa altura, a hospedeira foi abordada por um operador de placa, que gesticulava com uma coreografia exagerada. O homem queixava-se (soubemos mais tarde) que “aquilo” não podia ficar ali porque quando o nosso avião metesse motores os dejetos iriam “descolar” e esborrachar-se no aparelho parqueado no spot detrás.
Dentro do avião, o homem cego pedia em voz alta que lhe dissessem o que se passava com o seu cão guia.
– “O Jackson? Para onde é que me levaram o Jackson? Devolvam-me o meu Jackson!”
Debruçados sobre as janelas do meu lado do avião, toda a gente delirava com a cena. Até a senhora XXXL se livrou da extensão do cinto de segurança para afogar na sua volumetria o passageiro que estava sentado na janela oposta, balanceando a aeronave conforme se ia rindo.
Quando a hospedeira regressou ao aparelho entregou o cãozinho ao dono e voltou a sair com um monte de “sacos de enjoo”. Depois regressou com uma expressão tão enojada que parecia que ela própria iria usar um dos sacos sobrantes. Os sacos com o “precioso conteúdo” foram armazenados no cockpit e a porta do avião voltou a fechar-se. Eu tinha rido tanto com o ocorrido que me doíam os músculos abdominais. Mas a gargalhada especial só veio quando o piloto disse que estávamos em número dois para descolar, logo atrás da aeronave que a moça do balcão da Continental me tinha inicialmente sugerido; e que eu recusei.

Camarada, quando o azar nos apanha, por mais voltas que se dê, não há nada a fazer. Gosto sempre das tuas “estórias”, recheadas dum excelente poder de observação e memória! Abraço
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