De acordo com os Acordos de Bicesse, assinados a 31 de maio de 1991 pelas partes em conflito em Angola, durante o processo eleitoral Angolano que deveria decorrer em 1992, as duas principais forças em confronto militar (UNITA e MPLA), deveriam reduzir os seus efetivos e desmobilizar combatentes. Ambos os partidos iniciaram efectivamente a desmobilização de grande parte dos seus combatentes, mas, alegadamente, haveria uma grande tolerância no tocante a ficarem com as armas ligeiras que lhes estavam distribuídas. Em resultado disso, toda a gente tinha uma AK-47 Kalashnikov e vários carregadores cheios de balas em casa.

A questão dos desmobilizados era, talvez, o maior problema na situação do pós-conflito que Angola viveu em 1992. Segundo constava (fontes internacionais em Luena), havia uma notória diferença comportamental entre os dois partidos em conflito.
– “Os desmobilizados da UNITA dão o nome no centro de desmobilização, formavam a três e regressavam à Jamba. Os desmobilizados das FAPLA (forças do Governo MPLA) tentam vender as suas armas no mercado e vão para o aeroporto à espera de transporte para Luanda.”
Uma pistola militar custava, no mercado local, 8 000 Kwanzas e uma Kalashnikov 12 000 Kwanzas. Um modesto valor que, no caso da AK-47, seria equivalente ao preço de um volume de tabaco com 20 maços de cigarros. Se a coronha da arma tivesse um trabalho de gravação esculpido, o preço seria um pouco mais caro.
Em Luena, a parte visível do problema dos desmobilizados, estava no aeródromo. Em Outubro de 1992, vagueavam pelas instalações do aeródromo cerca de 400 ex-militares das FAPLA, alguns acompanhados da respetiva família. Todos aguardavam um avião que os levasse para Luanda. Por definição, em qualquer conflito, as matérias relativas à desmobilização de combatentes são um assunto das autoridades locais. As Nações Unidas podem assessorar, apoiar ou até mesmo financiar, mas podem intervir na decisão e processo seleccionado para o efeito. É uma forma de fortalecer a autoridade e soberania Nacional dos governos empossados. Em resultado disso, as aeronaves ao serviço da ONU, entre elas um avião C-130 da Força Aérea Portuguesa em missão de apoio às eleições Angolanas, não tinham autorização para embarcar esta gente, a não ser que recebessem a tarefa específica para o fazer pelas autoridades de Luanda; o que acontecia pontualmente, através de um pedido expresso do Governo Angolano à UNAVEM.

Um certo dia o C-130 português apareceu em Luena com a missão de levar 90 desmobilizados para Luanda. Dirigi-me à aeronave, a fim de saudar os meus compatriotas, colocando-me à disposição para os ajudar no que fosse necessário. Quando entrei na cabine de pilotagem – cockpit – a tripulação comentava que algo teria batido na asa esquerda durante a aterragem, mas não se via nada significativo daquele ângulo.
– “Provavelmente foi um bird-strike [colisão com uma ave]” – disse o navegador espreitado pela janela – “quando os pássaros são muito pequenos não se consegue ver bem!”
Depois de muita confusão no exterior da aeronave, lá se conseguiu carregar 90 passageiros, de entre as muitas outras dezenas que ficaram em terra a protestar violentamente.
Mais tarde soube que o impacto na asa esquerda do Hércules, não tinha sido uma ave, mas sim duas balas de kalashnikov. Uma delas ficou alojada a escassos centímetros de um componente fundamental da aeronave o qual, se tivesse sido atingido, iria por certo causar sérios problemas no voo de regresso a Luanda.
