Os meios aéreos que a ONU utiliza nas suas operações não são pertença daquela organização. É lançado um concurso público internacional, e quem ganhar esse concurso fornece o serviço completo de “aeronaves e tripulações prontas na linha da frente”. Geralmente, quem concorre são empresas especializadas na área, que depois subcontratam os operadores aéreos, buscando a melhor relação preço/qualidade (onde o preço tem ascendência). Depois, para reforçar as operações aéreas em determinados territórios, os países interessados oferecem mais meios aéreos, cuja operação é comparticipada pela ONU.
Na missão da ONU para as primeiras eleições angolanas, em 1992, os helicópteros ao serviço das Nações Unidas eram russos, e tinham sido subcontratados por uma firma canadiana que tinha ganho o concurso internacional. Os canadianos pagavam os serviços à entidade russa subcontratada, mas corrupção grassava na estrutura superior russa e as tripulações no terreno não recebiam os respetivos vencimentos. A insatisfação dos tripulantes russos no aeródromo de Luena (antigo Luso) era tal, que havia uma ameaça de greve aos voos de apoio às eleições. O responsável local do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – William Scott – tentou apaziguar os nossos russos, prometendo interceder por eles na estrutura superior da ONU, e passou a oferecer-lhes três refeições diárias e aguardente local – caxipembe – gratuitas até ao final da missão.
Surpreendentemente, a Caxipembe à borla pareceu ser um argumento de peso naquela resolução de conflito. As serenatas dos dias seguintes foram um sucesso, e até apareceu e uma versão moscovita de Elvis Presley, acompanhado à viola, com a voz grave e arrastada pela caxipembe. Foi nessa missão da ONU, no antigo AM-44 da FAP, que ouvi “Love me tender”, de Elvis Presley, cantado em russo; e gostei!
Aliás, as noites dos nossos russos eram geralmente bastante “regadas”. Bebiam para comemorar algo que tivesse corrido bem; bebiam para marcar algo que tivesse corrido mal; bebiam por quase todos os motivos e, quando não havia motivo algum, bebiam para criar um. Mais de uma vez tive de me assegurar que, no dia seguinte, antes do nascer-do-sol, estavam todos “suficientemente sóbrios” quando iam para os helicópteros, o que era um desafio. Lembrei-me de uma história publicada num jornal no tempo da guerra fria, onde se reportava que uma tripulação de um carro de combate T-55 soviético, durante um exercício na Polónia, tinha trocado o tank por uma grade de garrafas de vodka. Era uma questão cultural e não havia nada que eu pudesse fazer; a não ser assegurar-me que os meus tripulantes andavam numa linha reta quando se dirigiam para os helicópteros.
Voavam por instinto e não segundo os procedimentos. A segurança de voo era uma preocupação minha, mas, aparentemente, era mesmo só eu que tinha isso em consideração. A fim de cumprir com as necessidades das autoridades civis e da ONU, as aeronaves que eu geria saiam em média quatro vezes por dia. Essa situação era do agrado das tripulações russas porque, aparentemente, quanto mais voassem mais dinheiro ganhavam; quando recebiam … se recebessem! A segurança de voo era considerada um faits divers dos ocidentais; algo que vinha nos livros, mas que não era para levar demasiado a sério. Contudo, o cansaço das pessoas e a fadiga de materiais das máquinas começava a acusar os excessos, deixando-me deveras apreensivo com a sobrecarga de trabalho.
– “Não te preocupes Paulo” – dizia-me Anatoli Petrov, o único russo que falava inglês. – “Nós voávamos muito mais do que isto no Afeganistão, e lá havia gente que nos queira deitar abaixo. Pelo menos aqui não fazem fogo sobre nós!”
– “Pois não Anatoli,” – respondia-lhe – “mas o chão de Angola é tão duro quanto o do Afeganistão, e eu não quero que vocês provem a densidade do terreno!”
Cancelei vários voos, recusei outros, e discuti muitas vezes nas reuniões de coordenação com as autoridades eleitorais, para zelar que nenhuma das tripulações tivesse um encontro não controlado com o solo angolano.
Os nossos pilotos tentavam satisfazer as necessidades da campanha aérea, carregando o máximo de pessoal e material possível em cada voo. Embarcavam tudo o que podiam e tentavam descolar. Depois iam retirando “carga” até o helicóptero (MI-17) conseguir elevar-se nos ares; e seguiam viagem.

Peso & centragem a “olhometro”.
Certa manhã, após os nossos meios aéreos terem partido como um bando de pássaros, retirei-me para o cantinho da ONU na placa do aeródromo. Sentei-me num caixote para relaxar um pouco e liguei o meu walkman para ouvir uma música suave. A música arrancou com uma sonoridade pastosa e arrastada, sendo um primeiro sinal que as pilhas do meu walkman estavam gastas. Abri o aparelho e iniciei o procedimento de troca das pilhas. Nisto, um miúdo que andava por ali a catar desperdícios de Jet A-1, aproximou-se. O rapaz estava descalço e todo sujo, mas parecia observar cuidadosamente todos os meus movimentos. Quando eu me preparava para guardar as pilhas velhas no bolso do fato de voo, dirigiu-me a palavra:
– “Sôr, dá-me as pilhas.” – Pediu ele.
– “Companheiro, estas pilhas estão gastas, já não funcionam, perderam a eletricidade. Entendes?” – Respondi-lhe.
– “Não faz mal, Sôr. Dá-me as pilhas, por favor.” – Insistiu a criança.
– “Oh rapaz, eu dou-te as pilhas, mas elas não te vão servir de nada. Não consegues tirar nada daí de dentro.” – Retorqui enquanto lhe dava as três pilhas AA do leitor de cassetes portátil.
– “Tché … – exclamou ele – consigo, consigo! Abro-as com uma catana e meto-as dentro de um panelo com fruta e farelo de milho a fermentar, para fazer a caxipembe. O ácido das pilhas apressa as coisas e amanhã o caxipembe já está pronto para eu vender no bazar!”
– “Ora toma!” – Exclamei em voz alta – “Acabei de receber uma aula de química aplicada, de um puto com 12 anos! Então é assim que vocês fazem aguardente expresso?” – Perguntei.
Mas a criança já tinha “descolado” em direção aos portões do aeródromo, com as três pilhas numa mão e uma lata com Jet A-1 na outra.
Fiquei apreensivo com a poderosa aguardente que eu tinha estado a beber, com os meus amigos russos, numa das serenatas dessa semana. Será que também tinha sido feita à base de aceleradores de fermentação, do tipo: ácido sulfúrico? Pela forma como os russos a consumiam à noite, quando chegassem a Moscovo teriam de trocar de fígado! A partir desse dia, passei a beber só bebidas estrangeiras engarrafadas no exterior, ou de origem muito bem recomendada.

Caxipembe – aguardente de milho – expresso
Ainda tentei avisar os tripulantes russos sobre a forma duvidosa como aquela beberagem era feita, mas para eles pouco importava como aquilo era feito, desde que fosse de borla estava ótimo; e o “Elvis” continuou a cantar em russo nas noites quentes angolanas.

História extraída do livro “Angola 92 – Diário de um Capitão” que recorda a primeira missão da Força Aérea Portuguesa para as Nações Unidas, feita para apoiar as primeiras eleições livres Angolanas.
