(Artigo publicado no Boletim 83 da Associação da Força Aérea – AFAP – FEV.MAR.ABR 2023).
O mundo da aviação tem as suas características próprias e outras que partilha com a sociedade civil. As superstições são disso um exemplo. Numa atividade onde um “fio partido ou mau contacto” pode ditar a diferença entre o sucesso e o desastre, é natural que se respeitem as superstições da cultura onde se está inserido.
Pessoalmente, tive a oportunidade de testemunhar as superstições do transporte aéreo, em 2013, voando numa companhia aérea Afegã quando cumpria missão para a ONU em Cabul.
Pouco tempo após chegar ao Afeganistão tive de me deslocar ao exterior para reuniões com outras missões, e pediram-me para tratar pessoalmente da minha viagem. Depois de muitas peripécias no agendamento e compra do bilhete em avião comercial, começou um episódio digno de recordação. Pedi para voar à janela e a máquina emitiu um bilhete com o número 39 A, num voo que partia de Cabul no dia solicitado depois de almoço.
Nesse dia, várias horas antes da previsão de descolagem, apresentei-me na parte civil do Aeroporto Cabul – Hamid Karzai International Airport – e aguardei na sala de embarque. Sabendo que, na cultura afegã, os relógios são meros objetos decorativos, não estranhei quando fomos informados que o voo estava atrasado. Porém, quando o sol se pôs sem haver sinais do avião, a coisa começou a ficar preocupante. Era já noite cerrada quando um Boeing 737 com o nome da companhia aérea escrito na fuselagem apareceu na placa vazia, trazendo uma quantidade de passageiros do Dubai.
Como a parte civil do Aeroporto estava só à espera daquela última descolagem para fechar, não houve qualquer serviço de limpeza turnaround. Quando embarcámos, encontrámos a aeronave repleta de pacotes de comida vazios e lenços de papel pelo chão. Não gostava do que via, mas tinha de ser tolerante – ciente que a palavra Tolerante vem do Latim Tolerari – que significa “sofrer calado”.
Comecei à procura do lugar 39 A, mas para minha surpresa verifiquei que o avião não tinha esse lugar. A numeração dos bancos da aeronave saltava da fila 38 para a fila 40. Chamei a hospedeira e perguntei o que se passava. Foi nessa altura que descobri que o 39 era um número “tabu” no Afeganistão; algo que, aparentemente, a máquina de impressão dos bilhetes não tinha conhecimento porque o sistema era americano. Segundo me foi rapidamente explicado, o número 39 era um número maldito, muitas vezes associado a esquemas mafiosos de crime e prostituição. Aquele número passou a superstição, e era de evitar tudo o que tivesse o 39. Até mesmo as comissões políticas afegãs e os números das portas em Cabul saltavam do 38 para o 40.
A hospedeira dirigiu-se em Dari (língua de origem Persa) a um homem que estava sentado no número 40 A, ele levantou-se e ela pediu-me para ocupar aquele lugar, atribuindo ao outro passageiro o banco reservado à hospedeira, indo ela sentar-se no cockpit.
Coloquei a minha bagagem de mão no compartimento superior e sentei-me junto à janela. Nessa altura aconteceu algo surrealista: – a janela de plexiglass do avião caiu-me no colo!
Eu não queria acreditar no que estava a passar-se. Chamei de novo a hospedeira, que aparentava estar mais farta de chatices do que eu.
– “Desculpe Miss, mas acabou de me cair a janela no colo. Isto é mesmo assim?”
A rapariga agarrou na janela de plástico, enquadrou-a na moldura do revestimento interior da fuselagem e, com três socos que me pareceram demasiado rotineiros, voltou a encaixar a janela dizendo:
– “Não se preocupe, a verdadeira janela está no lado de fora do avião; essa é uma mera decoração.”

E foi-se embora para resolver um outro problema ou reclamação.
Claro que eu sabia que a janela que nos protegia da descompressão estava no exterior da aeronave, mas esse conhecimento não me descansou relativamente ao serviço de manutenção da aeronave.
Ato contínuo, o avião começou a rolar e o piloto comandante falou no sistema de som – com um inglês made in Texas – solicitando aos passageiros se certificassem que tinham os cintos apertados e as mesas de apoio recolhidas, porque aquela descolagem ia ser feita no gradiente máximo de subida. Um procedimento normal por aqueles lados, quando havia desconfiança de atividade talibã nos arredores do Aeroporto, para colocar a aeronave o mais rapidamente possível fora do envelope das armas ligeiras e misseis portáteis (MANPADS).
Ri-me de tudo aquilo, porque não eram os Talibã que me preocuparam naquela viagem, mas sim aquela janela que durante todo o voo teimava em continuar a mostrar-me as entranhas do B-737. … especialmente quando o meu lugar original era o número 39!
