Mapa (3D) de Sarajevo, 1995 a Cidade cercada.

Legenda (este desenho não está, obviamente,à escala) – 1 Hotel de jornalistas “Holiday Inn”; 2 – Edifício do PTT e Quartel-General da ONU para o Setor Sarajevo; 3 Monte Igman; 4 – Zona Sérvia de Dobrinja; 5 – Avenida dos Snipers; 6 – Quartel-General da ONU para a Bósnia-Herzegovina; 7 – Aquartelamento ONU de Zetra; 8 – Zona Sérvia de Lukavica e Grbavica; 9 – Moradia da equipa de UNMO; 10 Monte “Spiky Rock”; 11 – Monte Trebevic.

No início de Agosto de 1995, entrámos em Sarajevo via Monte Igman, porque o Aeroporto estava fechado ao tráfego aéreo. Por todo o lado havia muito lixo, pedaços de prédios e restos de viaturas automóveis. Só o vento, ou a deslocação de ar provocada por um eventual carro da ONU que passasse, fazia com que os papéis abandonados no pavimento se movessem de um sítio para outro. Onde o lixo se concentrava um pouco mais, subia uma coluna de fumo por alguém lhe ter colocado fogo. Era a única forma de evitar pestes de animais que provocavam doenças na população da Cidade. Também havia, obviamente, corvos e gralhas a ajudar na limpeza das lixeiras.

Nas janelas e varandas, que não estavam voltadas para o lado sérvio (portanto protegidas do fogo dos snipers), havia vasos e floreiras onde, em vez de plantas de jardim, cresciam vegetais comestíveis. Cenas desesperadas de sobrevivência de uma população sitiada. Ouviam-se com regularidade disparos de armas automáticas ligeiras, intervalados por armas pesadas. Ocasionalmente ocorria uma explosão à distância. Entre os altos edifícios de apartamentos havia áreas de vivendas familiares, que quebravam a obstrução aos raios solares deixando a luz entrar nas ruas imundas de lixo. Todos os objetos em madeira, sendo mobiliário público ou privado, que não fossem absolutamente necessários, tinham sido há muito tempo transformados em lenha para aquecer o inverno ou cozinhar a parca comida que aparecia na Cidade. Os antigos canteiros municipais, que anteriormente embelezavam as ruas com plantas e zonas verdes, estavam votados ao abandono e transformaram-se em pequenas selvas com grandes arbustos. Nas ruas pouco frequentadas, cresciam ervas altas nas uniões do pavimento. Um cenário de deserção urbana pós-apocalíptico.

Conforme se ia penetrando na zona central da Cidade, começavam a ver-se mais pessoas nas ruas, tentando levar uma vida adaptada àquele situação. Em certas ruas apontadas às colinas circundantes, havia contentores marítimos, carros ligeiros e autocarros estropiados, empilhados uns em cima dos outros, procurando fazer um muro à visibilidade dos atiradores furtivos. Onde não havia espaço para colocar os veículos, era usada a alternativa de, a partir dos pisos superiores dos edifícios de ambos os lados da rua, atravessar uma sequência de cordas com todo o tipo de longos panos, cortinas, oleados e alcatifas penduradas, para obstruir a visibilidade dos snipers. Era na sombra desses obstáculos visuais que os peões transitavam, como um carreiro de formigas que não se desvia do trajeto.

Em algumas pontes, jardins públicos e esquinas de ruas, havia um sinal de trânsito que eu nunca tinha visto – “Pazi Snajper” [cuidado sniper]. Significava que, após aquela esquina, a próxima rua era considerada uma zona de morte, que estava na mira telescopia de uma espingarda de precisão a longa distância, de um sniper sérvio.

Em certos locais, como por exemplo junto ao hotel Holiday Inn, onde residiam quase todos os jornalistas, havia uma outra versão cuja tradução dizia:

– “Opasna zona , RUN or RIP” (Zona Perigosa – Corre ou Descansa Em Paz).

Era um aviso com um toque de humor negro, misturando a língua servo-croata – Opasna zona [Zona perigosa] com o Inglês – RUN [corre] or [ou] R.I.P. – o acrónimo fúnebre para Rest In Peace [Descansa em Paz].

Viam-se também muitos sacos de areia empilhados em trincheiras elevadas, para proteção das entradas dos edifícios. As grandes vitrinas das montras comerciais estavam tapadas por placas retangulares, em betão armado pré-fabricado, colocadas com a base menor no chão e inclinadas sobre o prédio que procuravam proteger. Nos edifícios altos, os pisos superiores estavam expostos ao fogo dos sérvios e exibiam a prova de uma guerra sem limites. Era como se alguém tivesse derramado um ácido poderosíssimo sobre os prédios, que os fosse desfazendo de alto abaixo.  Quanto mais elevado era o andar, mais corroído estava. As paredes ostentavam as perfurações das balas e, em alguns sítios, ainda fumegantes, viam-se grandes buracos resultantes dos impactos diretos de projéteis de artilharia. Na generalidade, não havia vidros nas janelas e, em muitos casos, estava impresso a negro nas paredes exteriores o sinal de ter havia um fogo naqueles cómodos.

Onde parecia haver habitantes, os vidros eram substituídos por plásticos, com o símbolo da agência ONU para os refugiados – UNHCR – a qual oferecia rolos de plástico especificamente para esse efeito. Quanto mais exposta às colinas circundantes a casa estivesse, mais castigada pela guerra a sua estrutura estaria. Em Sarajevo, ter uma casa com uma linda vista para a montanha, era sinónimo de morte.

Sarajevo estava cercada por colinas e em quase todas elas havia tropa sérvia a bombardear a Cidade.

Publicado por Paulo Gonçalves

Retired Colonel from the Portuguese Air Force

Deixe um comentário

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora